Temos vivenciado nos últimos dias talvez o maior caso, salvo melhor juízo, de disclousure das informações contábeis divulgadas de forma indevida, bem como os impactos de governança corporativa no Brasil, e a pergunta que fica: e a SOX, onde ficou? E os acionistas das Americanas onde ficaram com prejuízo? A contabilização de uma operação com características de divida na conta de fornecedor é sem duvida um misleading, e não atender a obrigação contábil de representação fidedigna, segregando as contas pela sua natureza e pelos seus riscos. Caso as operações não tenham características de dividas estas são da operação e devem figurar na conta de fornecedores e não de dívida bancária, que seria um contrassenso.
È bom lembrar que a CVM em 2016 já tinha alertado para esse tipo de operação “errada”, o que na minha humilde opinião não se pode alegar desconhecimento. Entendo portanto que tivemos de 07 a 10 anos geração de lucros artificialmente maiores, dividendos e JCP pagos sobre um lucro não existente, e o agravante os executivos recebendo seus bônus sobre um resultado artificial.
Vou tentar explicar na forma de débito e crédito o que entendo o que deveria ter sido feito, conforme demonstrado a seguir:
Imagine que a empresa comprou estoque a prazo, para pagar em 3 meses, por $150. Se fosse à vista, pagaria $120.
Logo, há juros embutidos na compra a prazo.
No entanto, a contabilização mais comum, desconsiderando AVP (ajuste a valor presente), é feita assim:
D – Estoques – $150
C – Fornecedores – $150
Posteriormente, a empresa antecipa o pagamento de fornecedores com a operação de “risco sacado”, ou seja, o banco paga ao fornecedor (certamente algo inferior a $150, pois está antecipando o pagamento) e a empresa passa a dever ao banco.
Nesse momento, caberia uma reclassificação contábil:
D – Fornecedores – $150
C – Empréstimos – $150
No entanto, quando se trata de passivo financeiro, este deve estar contabilizado a valor presente. Vamos imaginar que o AVP desta dívida seja $120. Logo, o passivo deveria ser reduzido, em contrapartida ao estoque, que está “inchado” com o custo financeiro da dívida.
D – Juros a Apropriar (redutor da conta empréstimos) – $30
C – Estoques – $30
Ao longo dos meses, a conta “juros a apropriar” será apropriada para despesa financeira, de acordo com a curva dos juros seguindo o regime de competência:
D – Despesa de juros
C – Juros a apropriar
No vencimento, a empresa paga o banco:
D – Empréstimos – $150
C – Caixa – $150
O que não foi divulgado pela Americanas no meu entender resume-se na reclassificação do passivo, de fornecedores para empréstimos, logo não reconhecendo despesas de juros e o estoque sendo baixado para CMV com um valor superior em relação ao real custo do estoque (o que seria o equivalente valor à vista do mesmo).
Estes efeitos não divulgados impactariam os Covenants das operações de empréstimos registradas, podendo gerar pagamento antecipado da dívida, onde não existiria caixa suficiente para a liquidação dos mesmos e impactaria o capital de giro da Companhia com indícios de que os acionistas deveriam aportar novos recursos, para não ferir o princípio da continuidade.
Meu entendimento é que precisamos esperar os fatos serem levantados para termos a Big Picture e podermos de uma forma mais justa exercemos nosso juízo de valor sobre o que aconteceu, e o que estar nas entrelinhas. Não temos elementos suficientes para podermos exercer este juízo de valor e principalmente o vulto que a discussão tomou para um assunto de geografia contábil como afirma o Prof. Eliseu Martins em seu artigo na Capital Aberto.
No caso Americanas fica com toda certeza o aprendizado de como gerir momentos de crises, porém com uma grande pergunta não mais de geografia contábil, mais sobre o negócio: qual será o futuro da Americanas, e acima de tudo se este modelo de negócio para de pé?
Habib Bichara é Diretor do Segmento de Corporate Finance & Governança Corporativa do Grupo Gennesys.